16 fevereiro 2014

15 anos do Portal Kids - Policiais Heróis



Em 16 de março o Portal Kids completa 15 anos de existência. Mas parece que existe há uma eternidade, que sempre fez parte da minha vida. E surgiu por acaso. Convidada por uma ONG para fazer uma pesquisa sobre pornografia infantil na Internet para investigar um suposto código secreto destas fotos chamado "kids" (crianças em inglês), tive a ideia, ajudada por um amigo, de criar um site na internet com o nome de Kids-Denúncia, com um espaço para que pessoas pudessem denunciar se estas fotos estavam mesmo circulando secretamente na Internet. Como sou jornalista, garanti o sigilo de minhas possíveis fontes e colocamos o site no ar justamente no dia 16 de março de 1999. Como achava muito remota a possibilidade de receber denúncias, ainda lembro da surpresa com que eu e meu amigo recebemos as primeiras notificações. Surpresa e horror. Imagens tão abusivas, tão doentias. 15 anos se passaram e eu ainda me pergunto: Como um ser humano pode cometer tamanha crueldade com uma criança? Certa vez, logo no início do trabalho, recebemos uma denúncia de uma série de imagens de crianças sendo violentadas e torturadas. Tudo isso exibido de um site da Internet que foi retirado do ar pelo Núcleo de Direitos Humanos da Polícia Federal de Brasília. Preocupado com minha sensibilidade o delegado, que investigou as imagens de um site do exterior e que rapidamente as tirou do ar, me ligou para aconselhar: "Wal, aconselho você a não ver essas imagens. Eu, que já vi de tudo nessa vida, estou chocado, dilacerado." Em atenção a cortesia do delegado, essa foi a única denúncia recebida nesses 15 anos de existência que não vi.
Um filme passa por minha cabeça, uma vida de histórias. Tantas ações, sucessos, luta e, acima de tudo, tanta transformação para melhor. Com muito humildade ouso dizer que o Kids-Denúncia, depois denominado Portal Kids, primeira central de denúncias contra a pornografia infanto-juvenil no Brasil, mudou a história do combate a este crime no país, assim como a do desaparecimento de crianças.
Estou, muito lentamente, escrevendo as memórias desse trabalho. Mas, nessas palavras, não queria falar da ação e sim daqueles que considero a minha maior conquista e que me fizeram acreditar na humanidade e que Deus existe e mora dentro do coração do próprio homem.
O agente Alexandre Queiroz, do Núcleo do Direitos Humanos da Polícia Federal de Brasília, foi o primeiro policial com que lidei. Ele participou de uma ação que retirou menores de um encontro sexual em Campinas, São Paulo, em 1999, operação deflagrada pelo então Ministro da Justiça Renan Calheiros. Devido a gravidade da denúncia Dr. Renan pensou até em criar uma força tarefa na Polícia Federal para investigar esse tipo de crime. O projeto não saiu da ideia, mas digo sem sombra de dúvida que essa força tarefa foi personificada na figura do agente Cabana, como era conhecido na PF. O policial Alexandre passou a cuidar sozinho de nossas inúmeras e graves denúncias e foi o terror dos pedófilos e abusadores sexuais enquanto esteve em nosso trabalho. Ele foi - e sempre será - o herói do Portal Kids.
Outro policial federal, este do Rio de Janeiro, foi o agente Rodrigo Moreira. Jovem e competente, também fez a história do Portal Kids.
Na Polícia Civil, na área da investigação do desaparecimento de crianças, comecei a ser procurada por um investigador da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, o inspetor Gilvan Ferreira. Recebi tal interesse com muita desconfiança já que polícia e mães de desaparecidos não combinavam. Fugia do inspetor Gilvan com a mesma determinação com que ele me caçava. O policial venceu. Aceitei iniciar uma parceria com ele, não sem antes o prevenir, numa tarde em que foi as escadarias da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, Rio, atrás de nós: "Tem certeza que quer abrir sua delegacia para gente?"
"Que mal podem me fazer essas inocentes mãezinhas?" - perguntou-me sorrindo.
Em breve as palavras se tornaram outras. Toda vez que eu entrava na delegacia, ele lamentava:
"Lá vem ela. A líder das Amazonas. Ah, meu Deus! Toda noite acordo tremendo, suando e pensando: Que comunidade essas mães vão me mandar hoje!"
Inspetor Gilvan é o herói de nosso trabalho na investigação junto aos desaparecidos, com a fiel colaboração do inspetor Robson Fontenelle, Marcus Guimarães, Roselaine Lopes e o delegado Leonardo Tumiate. Soube recentemente que este delegado, que investigou o caso das meninas sequestradas pela Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV), virou juiz. Se eu pudesse encontrá-lo o agradeceria pela grande contribuição que Dr. Tumiate deu ao nosso trabalho insistindo para que eu conhecesse o policial Gilberto Fernandes da Silva, que atuava como psicólogo naquela unidade, no ano de 2005. Dr. Tumiate insistia para eu conhece-lo, eu resistia, porque só gostava de trabalhar com o  inspetor  Guimarães. Como naquela época existia o projeto de criar a primeira delegacia de desaparecidos no Rio de Janeiro, marcou uma reunião para eu conhecer a equipe que atuaria e me obrigou a encontrar Gilberto. Diga-se de passagem, ele chegou ao encontro tão mal humorado como eu. Nunca perguntei, mas deve ter ido ao encontro obrigado também. Sentamos lado a lado e não demos uma palavra um com o outro. Ao final dela, Gilberto se virou para mim e saiu-se com essa:
Eu e Gilberto na preparação do projeto Mães do Brasil (2006)
 
"Essa delegacia não sairá do papel, mas gostei do trabalho do Portal Kids. Quero trabalhar com vocês!"
"Como não sairá do papel?", questionei escandalizada e irritadíssima.
"Não sai! Mas me ofereço para apoiar o trabalho de vocês."
Limitei-me a fechar a cara e dizer que não tínhamos verba para contratar ninguém e não precisávamos de investigadores.
"Trabalho como voluntário. Tenho moto! Posso até entregar correspondência para vocês!"
Desconfiadíssima com tamanha boa vontade, até realizei uma investigação junto as minhas fontes sobre o policial em questão, mas nada encontrei que desabonasse sua conduta impar dentro da polícia. A delegacia não saiu e na confusão que se seguiu a dissolução da investigação do caso das meninas sequestradas na época, esqueci-me de Gilberto completamente.
Até que no ano de 2006 ganhamos o apoio do Criança Esperança, projeto da TV Globo em parceria com a UNESCO. Ao receber o contrato, eu e a psicóloga Valéria Magalhães descobrimos que diretor não podia atuar como funcionário do projeto e daí surgiu o problema. Onde encontrar um profissional que atuasse como psicólogo das Mães do Brasil? Depois de avaliar sem sucesso diversos candidatos, Valéria lembrou-se do policial psicólogo, com quem conversara e simpatizara bastante. Liguei para Gilberto que deve ter se surpreendido com o contato depois de tanta rejeição. Mas veio para a primeira reunião e perguntou se poderia dizer as mães que era policial também, devido a aversão que tinham a figura do policial. Só então me toquei do problema que podia gerar, mas banquei, dizendo que jamais esconderia tal fato delas. Ele respondeu:
"Ótimo, porque eu também! Além do que tenho orgulho de ser policial!"
A resistência inicial logo se transformou em paixão. Gilberto conquistou o coração das Mães do Brasil e fez do atendimento psicológico a base e a inteligência emocional do Portal Kids. Gilberto é o meu grande amigo, uma espécie de grilo falante, já que funciona como a consciência de nosso trabalho. E ser consciente é tudo nessa vida. Gilberto tem muito amor por esse trabalho. Esse amor chamou a atenção de sua sócia no ramo do comércio, Luciana Maggio, que aceitou bancar uma inédita campanha de prevenção que será realizada através dos produtos que sua loja comercializa. É uma tentativa de arrecadar fundos para esse trabalho que precisa crescer, mas tem que continuar com a independência que sempre o caracterizou. Em breve a campanha será lançada, com parte da renda revertida para os trabalhos de nossa instituição, em especial os projetos Mães do Brasil, que oferece apoio psicossocial e jurídico à famílias de crianças desaparecidas e o Gente do Amanhã, que oferece inserção ao lazer e a cultura e atendimento psicossocial à famílias de crianças desaparecidas e jovens de comunidades de baixa renda. Contamos com vocês para a expansão e crescimento desse trabalho que incluirá um novo e inédito projeto em prol da criança e da pessoa desaparecida.

Wal Ferrão
wal.ferrao@portalkids.org.br

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