11 agosto 2010

Amor de pai


Ontem senti necessidade de um recolhimento. Precisei exumar os restos mortais de meu pai, falecido há três anos. Decidi cremar os ossos atendendo a um desejo dele próprio, que costumava brincar quando ouvia algum relato de um conhecido que construía mausoléus para os entes queridos.

“Quando eu morrer quero que me que me queimem e joguem as cinzas no mar”, dizia.

A exumação é um processo difícil, doloroso, mas uma oportunidade para que constatemos a impermanência da vida. No trajeto para o crematório o motorista do carro funerário me contou os problemas que está enfrentando com a filha de 14 anos, que engravidou aos 12, está recolhida a um abrigo e que nem ele, nem a mãe da menina, de quem é separado, ou seus parentes, desejam ficar com ela. Ao saber que eu trabalhava na defesa dos direitos da criança, pediu uma orientação. Como dizer, sem magoá-lo, já que estava sendo muito gentil; e também de uma forma que não rejeitasse a orientação, que ele estava completamente errado. Ainda bem que chegamos ao destino, mas o motorista, comovido com a ternura com que eu estava enfrentando o processo, resolveu me esperar e me dar uma carona de volta para casa. No trajeto de retorno, estava pensando numa maneira de abordar o problema de sua filha, quando um comentário feito por ele me deu a deixa:

“Você é uma boa filha. Não sei como a minha, a quem dei tudo, ficou tão rebelde!”

“Eu também fui muito rebelde, coitado do meu pai!” – comentei.

O motorista me olhou surpreso. Contei então a ele um conselho dado por meu pai quando eu era adolescente e que acabou por marcar e influenciar minha vida. Depois de mais uma vez aprontar, nem me lembro o que, pois aprontava tanto, meu paciente pai fez pela milionésima vez a mesma pergunta:

“Minha filha por que você fez isso?”

“Ah, pai, é porque eu sou rebelde”, justifiquei.

“Seja!” – disse meu pai. “Você sabia que os rebeldes é que levam o mundo para frente?”

Diante do meu espanto, veio a dica preciosa:

“Só procura usar sua rebeldia a favor do mundo e não contra você e aqueles que te amam!”

Disse ao motorista que meu trabalho em defesa das crianças foi a maneira que encontrei de usar a rebeldia de forma inteligente. Que ele procurasse fazer isso com sua filha. Hoje, passado o desgaste que todo o processo da exumação deixa na gente, pensei no quanto o amor de meu pai, sua paciência, intermináveis conversas, dedicação e até o excessivo cuidado e proteção que eu detestava foram fundamentais para fazer de mim a pessoa que sou. Me veio a mente a foto que os jovens do projeto Gente do Amanhã tiraram da praia de Saquarema, onde funciona a sede do Portal Kids no Rio de Janeiro, que mostra o mar em toda a sua força e impermanência. O mar se renova a todo instante, assim como a vida. Mas a beleza do mar permanece, assim como o amor de meu pai.

Por Wal Ferrão
wal.ferrao@portalkids.org.br

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